Faz algum tempo que uma mãe me enviou este texto, para que eu pudesse compartilhar no Blog, é um texto de R oberta Faria para a revista Sorria. É realmente lindo que nos deixa outras maneiras de pensar .
“O que nos cabe
Texto: Roberta Faria
Quando a Gabi nasceu, a primeira coisa que o médico falou foi “Ela é perfeita”. Respirava, o coração batia forte, tinha todos os dedos, veio grande e rechonchuda, passou em todos os exames. Era minha filha, já amada e esperada antes de chegar, e só havia o que comemorar.
Por um bom tempo, a Gabi correspondeu à previsão do médico e às expectativas (minhas e de qualquer mãe) de ser o bebê ideal. Tinha cachos dourados, bochechas cor-de-rosa, dobrinhas deliciosas. Mamava feito bezerro, crescia fora da curva, raramente adoecia. Também tinha todos os problemas típicos: chorava com cólicas, acordava de madrugada, cuspia o espinafre. O que só a fazia mais perfeita – era, afinal, tudo o que uma mãe esperava.
Foi no jardim de infância que as diferenças apareceram. Ela passava muito tempo sozinha, não tinha a coordenação dos bebês da idade, não participava das atividades do mesmo jeito. “Parece que está em outro planeta”, ouvi da professora. Mal sabia que, a partir dali, essa seria a frase mais usada para descrever a minha filha, por qualquer pessoa que passasse mais de meia hora com ela.
Fomos a muitos neurologistas, pediatras, psicólogos e psicopedagogos. Enquanto ela ainda era pequena, diziam que não era nada: só o jeitinho dela, ia passar. Quando a escola começou pra valer, as diferenças ficaram maiores, e veio a época das desculpas emocionais: é porque ela não se adaptou à escola. É porque mudou de cidade. É porque é filha única de mãe solteira que trabalha fora o dia inteiro. E haja culpa para acreditar em tudo.
Foi depois de repetir dois anos na escola que finalmente encontramos quem nos esclarecesse. Muitos exames e testes depois, ouvi um diagnóstico que me tirou o ar e o chão. Meu bebê, a esta altura uma menina enorme, que viera ao mundo sob a marca de “ela é perfeita”, tinha um cérebro com defeito de fabricação. Que não funcionava como deveria, e, mesmo com os melhores estímulos, nunca atingiria a média da maioria das pessoas.
Nada na vida me doeu mais do que essa notícia. Não por saber que minha filha não é perfeita: ao contrário, a amo ainda mais, se é que isso é possível. O que partiu meu coração foi pensar nos “nãos” debaixo do diagnóstico. É que perfeição não é só cobrança. Perfeição também é sonho. É um monte de desejos que a gente tem e que, quando realiza, ajuda a determinar a vida que construímos e a moldar nossa felicidade. Claro que, assim como sonhos, certas ideias de perfeição são inalcançáveis. Mas a busca por elas também pode ser uma forma de esperança, para nos mover e inspirar a fazer mais e melhor.
Ao saber que ela não era mais aquela menina perfeita, sofri por pensar que então ela não poderia ter uma vida perfeita. Que as limitações reduziriam também suas possibilidades, seus sonhos – suas chances de felicidade.
Levou um tempo para que eu entendesse que, na verdade, o que essa descoberta mudava não era o futuro da minha filha. Ela continuava a mesma, com as mesmas qualidades, defeitos, manias. O mesmo jeito de olhar para mim quando faz besteira, o desgosto por pratos que levem fígado, a paixão por filhotes de cachorro. O que precisaria ser diferente, daqui para a frente, eram as nossas expectativas – isto é, as nossas ideias sobre perfeição.
A gente costuma pensar que perfeição é um padrão, uma receita que serve para todos. Ora, é como querer que todos calcem o mesmo sapato. Enquanto estamos na média (que, aliás, é calçar 36, para mulheres, e 41, para homens), parece possível. Mas, quando não há fôrma que lhe caiba, melhor encontrar outro jeito de dar seus passos do que sofrer a vida toda para se encaixar onde não dá.
Buscar essas outras maneiras – esses outros sapatos – não torna necessariamente mais fácil o caminhar. São montes de dificuldades, todos os dias. Mas os passos são mais tranquilos, e já não doem como antes. Assim, a gente sofre menos com o que não nos cabe, aproveita mais a paisagem – e suspeito que chega mais perto da felicidade.”
Fonte:http://revistasorria.com.br