Gostaría de convidar a cada ser humano a não apenas ler , mas também compartilhar, entender, divulgar e comentar o
Manifesto dos Portadores da Síndrome de Tourette
elaborado por Giba Carvalheira , jornalista e portador da Síndrome.
Precisamos " segurar a lâmpada de Érico Véríssimo" .
"
Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia
de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e
injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade
de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos
assassinos e aos tiramos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do
horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou,
em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não
desertamos nosso posto."
Èrico Veríssimo Solo de Clarineta
Este é o manifesto que se encontra na página: http://laboratoriopsicodelico.blogspot.com.br/
Vimos, através dessa, fazer um manifesto dos portadores da Síndrome de Tourette, com o objetivo de esclarecer a sociedade a respeito da síndrome e levantar questionamentos pertinentes à causa.
Inicialmente, esclarecemos que a Síndrome de Tourette (ST) é um transtorno de origem neurológica, caracterizado pelos chamados “tiques”, fenômenos motores ou vocais involuntários, improvisos e repetitivos, e não completamente controláveis (em geral, o controle dos tiques por um curto período de tempo é cansativo e resulta em uma descarga de tiques ainda mais violenta após o período de interrupção). As primeiras manifestações de tiques geralmente ocorrem em idade escolar. Como exemplos de fenômenos motores simples, temos piscar os olhos, balançar a cabeça, estirar a língua; já os complexos, envolvem diversos grupos musculares (saltos, contorções). Os tiques fonéticos vão desde os mais simples, como pigarrear, assoviar, fungar, até os mais complexos, como latir, emitir grunhidos, repetir continuamente palavras ou frases ou, em casos menos frequentes, repetir insultos ou palavras obscenas (coprolalia). Geralmente a Síndrome de Tourette vem acompanhada de outras doenças a ela relacionadas, tais como Distúrbio de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDHA) e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
A origem da síndrome, segundo estudos mais recentes, se deve a anomalias genéticas que afetam o metabolismo dos neurotransmissores cerebrais, especialmente a dopamina. A síndrome ainda não tem cura, embora existam alguns medicamentos que podem amenizar seus efeitos. É de se ressaltar, porém, que esses medicamentos não são específicos para a ST, mas usados para atenuar seus sintomas. Em alguns indivíduos, a ST aparece em grau mais leve, por vezes desaparecendo completamente na fase adulta. Em outros, o fenômeno se manifesta de forma mais grave e perdura por toda a vida, com a manifestação de tiques complexos que causam uma verdadeira penalização no individuo e graves danos em suas relações sociais, afetando enormemente a sua qualidade de vida. As pessoas que de alguma forma entram em contato com o portador da Síndrome de Tourette frequentemente se sentem “incomodadas” com os tiques motores e vocais, e alguns, de maneira precipitada e superficial, chegam a rotulá-los de loucos. Mas essa é uma conclusão errada, pois a ST não afeta a capacidade intelectual de seus portadores.
Embora tenha sido identificada em 1825, pelo médico francês Georges Gilles de La Tourette, e seus sintomas tenham sido descritos em uma publicação em 1885, a ST ainda é bastante desconhecida tanto pela sociedade, quanto pelos próprios médicos, psicólogos e profissionais da educação, que lidam diariamente com os portadores, especialmente no Brasil. É preciso dizer que a ST não é tão rara como se diz. Segundo o Dr. Mauro Porta[1], a Síndrome de Tourette atinge cerca de 1% da população, mas chega a 20% ou 30%, se considerarmos apenas o universo de crianças em idade escolar que fazem ao menos um tique.
Em alguns países, existe uma discussão mais profunda e fundamentada sobre a ST, inclusive com a adoção de ações afirmativas para atenuar o grande sofrimento e exclusão por que passam os portadores de Tourette, seja através da utilização de protocolos específicos para o atendimento do paciente ou do aluno touréttico, como também da divulgação da síndrome nos meios de comunicação, além de proteção no mercado de trabalho. A título de exemplo, nos Estados Unidos o Departamento Federal de Justiça reconheceu, em alguns casos concretos, o portador de ST como portador de necessidades especiais, sendo-lhe garantida a proteção prevista no ADA (Americans with Disabilities Act), a lei americana de proteção às pessoas com deficiência[2]. Segundo a Associação Americana de Tourette, embora a ST não seja causa específica de deficiência, ela provoca situações embaraçosas no ambiente de trabalho, razão pela qual é mais fácil o empregador admitir pessoas em cadeiras de rodas ou com surdez, do que com Tourette. Na Espanha e na Alemanha, existe a possibilidade de o portador de Tourette ser submetido a uma avaliação para detectar o grau de incapacidade ou invalidez decorrente da síndrome, a fim de que lhe sejam garantidas compensações que possam superar os obstáculos decorrentes da doença. A Síndrome de Tourette é reconhecida como causa de incapacidade pelo Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais da Espanha[3]. Na Alemanha, são elaborados protocolos para orientar o professor que interage como portador de Tourette[4].
Já no Brasil, essa discussão é ainda incipiente. As famílias dos portadores de Tourette não tem tido qualquer apoio psicossocial, na maior parte das vezes o diagnóstico tem sido tardio, sem tratamento adequado, sendo comum que alunos com ST tenham suas matrículas rejeitadas em escolas, sobretudo da rede pública. Sem falar na dificuldade de o adulto touréttico ser inserido no mercado de trabalho, sendo geralmente“descartado” durante as entrevistas de seleção de emprego. Somente com o aprofundamento da discussão se chegará a uma maior proteção da pessoa touréttica, principalmente crianças e adolescentes, que geralmente são vitimas de chacota, repulsa, incompreensão e discriminação em todos os âmbitos. É necessária uma maior divulgação da síndrome e de suas características, a fim de minimizar os seus efeitos devastadores. Quanto mais cedo for detectada a ST, menos estigmatizante ela será para o seu portador. Mas isso só não resolve as inúmeras e complexas questões que envolvem o tema.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, em seu art. 3°, ao tratar dos objetivos fundamentais do Estado, elenca, dentre outros, a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, bem como a promoção do “bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O art. 5° da Carta Magna, por sua vez, trata do direito à igualdade de todos os cidadãos. No entanto, sabemos que a simples aplicação da igualdade formal não é suficiente para proteger os chamados grupos vulneráveis. A igualdade tem que ser colocada nos devidos parâmetros, de igualdade de oportunidades, de justiça. Para que seja garantida a todos a igualdade material, são necessárias as ações afirmativas, o que se traduz em garantir a determinados grupos uma proteção especial, em razão da sua vulnerabilidade. Esse tratamento especial tem por objetivo o fortalecimento da identidade e autoestima do grupo favorecido, bem como sua inserção e participação na sociedade. Pessoas estigmatizadas socialmente precisam ser aceitas dentro do contexto social. A valorização dos grupos vulneráveis tem que estar igualmente inserida nas oportunidades conferidas à maioria[5]. Enquanto que a igualdade formal tem sido muito debatida e implementada em relação a grupos já reconhecidos como vulneráveis, como as pessoas com deficiência, mulheres, negros, crianças, dentre outros, existem alguns grupos que ainda se encontram em um limbo jurídico vez que, por desconhecimento ou falta de previsão legal, ainda não se enquadram dentre aqueles que merecem proteção especial.
Esse é o caso dos portadores de Tourette. Como visto acima, uma síndrome extremamente invalidante socialmente, especialmente nos casos mais graves e complexos, e estigmatizante mesmo nos casos mais leves, mas para a qual ainda não há um posicionamento legislativo e doutrinário consolidado como sendo merecedora dessa proteção especial. Talvez porque no histórico médico a síndrome regride na maioria dos casos? Mas e aqueles que passam o resto da vida convivendo com ela? Na prática, o paciente de Tourette, mesmo os mais graves, não são diagnosticados como pessoas com necessidades especiais, não sendo beneficiados por todas as ações já direcionadas para esse grupo, e tampouco as discriminações diariamente praticadas contra eles são reconhecidas como tal e merecedoras da devida punição. Músicas de conteúdo discriminatório são livremente reproduzidas, sem que se discuta sequer os danos psicológicos causados por elas aos portadores de ST. Uma breve análise de decisões judiciais brasileiras de casos relacionados a Tourette demonstram como essa proteção está longe de existir.
É preciso que se esclareça que não queremos ser reconhecidos como incapazes para o trabalho ou para cursar a escola regular, mas sim que temos limitações, ditadas pela própria conduta da sociedade que se incomoda com os tiques, principalmente por desinformação e discriminação, o que nos impede de sermos inseridos no contexto social. E é nesse contexto que gostaríamos de ver reconhecida a necessidade de proteção especial que possa afastar esses obstáculos à nossa inserção social.
O importante é que o Estado assuma o seu papel, ou seja, igualdade de oportunidades a todos os cidadãos, sem distinção. O direito dos grupos vulneráveis tem que ser respeitado e os portadores da Síndrome de Tourette têm que ser reconhecidos como tal. Com essa argumentação, levantamos aqui alguns questionamentos:
1. Qual o real posicionamento dos neurologistas e psiquiatras brasileiros que tratam da Síndrome de Tourette em relação aos direitos dos portadores? Necessitamos de proteção especial?
2. Que tipo de direitos os portadores deveriam ter: auxílio governamental, empregos, inclusão social?
3. O que a sociedade pode fazer para contribuir na remoção dos obstáculos que enfrentam os portadores da ST? E as empresas, que oportunidades podem dar?
4. Que avanços legislativos podem ser obtidos em relação aos portadores da Síndrome de Tourette? Existe algum projeto de lei que contemple os direitos dos portadores de Tourette, a exemplo da recém-publicada Lei do Autismo (Lei n° 12.764/12)?
5. Que tipo de inclusão social poderíamos em amplo debate obter efetivamente?
6. Estamos dentro da chamada seleção de cotas? O distúrbio da Síndrome de Tourette pode ser considerado um tipo de deficiência?
7. Por que muitas escolas não aceitam alunos portadores de Tourette? Temos direito a acompanhamento especializado nas escolas, quando necessário? Até que ponto os educadores estão preparados para lidar com o problema?
8. O que o SUS tem feito para tratar a nossa questão, uma vez que muitos portadores são de cidades pequenas, onde não há psiquiatras e psicólogos atendendo pelo sistema público de saúde? Estamos incluídos nos programas de promoção à saúde? Existem estudos epidemiológicos de incidência de Tourette no Brasil, realizado pelo Ministério da Saúde?
9. Como combater efetivamente a discriminação ao portador de Tourette, impedindo que músicas alusivas ao nosso problema sejam deliberadamente usadas em propagandas comerciais?
10. Enfim, o que o Estado pode fazer por nós portadores de Tourette e nossos familiares?
Com esses questionamentos levantados, esperamos poder chamar a atenção da população em geral, dizer que nós existimos, estamos aqui e estamos excluídos e sofrendo violência moral diariamente, um verdadeiro massacre mental, que muitas vezes nos leva ao completo isolamento. Ainda não temos perspectivas de cura, não existe um só medicamento em cuja bula esteja escrito: “Esse remédio é para combater a Síndrome de Tourette”! Somos cobaias nas mãos de profissionais muito bem remunerados, que cobram consultas caras que nem todos podem pagar (em alguns casos, o portador não encontra tratamento adequado no SUS). Queremos um posicionamento claro e efetivo de todos esses segmentos citados, queremos, acima de tudo, igualdade de direitos!
Sugerimos:
- Criação de protocolos nas escolas para melhor lidar com o aluno com Tourette;
- Maior divulgação da doença nos serviços de saúde para que se possa ter uma atenção mais especializada para os portadores;
- Divulgação da síndrome no âmbito das universidades (Medicina, Psicologia, Enfermagem, Serviço Social, etc.), a fim de que os futuros profissionais saibam lidar com o portador e também estejam aptos a fornecer diagnósticos mais precoces;
- Ações afirmativas para garantir a inserção do portador de ST no mercado de trabalho, na fase adulta;
- Aperfeiçoamento da legislação para incluir os portadores de ST como merecedores de atenção especial;
- Maior divulgação da síndrome para o público em geral, objetivando minimizar as situações de discriminação social.
Notas:
[1]Médico italiano que dirige o Centro de Doenças Extrapiramidais e Síndrome de Tourette do Hospital Galeazzi de Milão, na Itália. Já atuou no Hospital Salpetriere de Paris e fez pesquisas na Northwestern Univesity of Chicago, onde começou a se interessar e estudar a Síndrome de Tourette. Disponível em: www.tourette.it
http://laboratoriopsicodelico.blogspot.com.br/